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Nosso blog é voltado para mulheres que desejam entender mais sobre questões relacionadas ao Direito das Famílias e Violência Doméstica, sempre com uma abordagem acessível e baseada na perspectiva de gênero.

Alienação Parental em Ações de Guarda de Filhos: Melhor Interesse De Quem?

No Brasil, uma mulher é vítima de feminicídio a cada 6 horas. Mesmo assim, mães que denunciam violência doméstica ainda são obrigadas a enfrentar um Judiciário que coloca sua palavra em dúvida e sua maternidade sob julgamento. Em vez de acolhimento, recebem acusações. Em vez de proteção, enfrentam punição. O instrumento? A guarda compartilhada obrigatória e a Lei de Alienação Parental.

Essa lei, vendida como mecanismo para garantir o “melhor interesse da criança”, tem sido usada para punir mães que ousam proteger seus filhos de pais violentos. O discurso da convivência familiar virou armadilha. O princípio da proteção integral, uma ficção jurídica. E a alienação parental? Um escudo legal para agressores.

Mas afinal, de quem são esses “melhores interesses”? Da criança? Da mãe? Ou do homem que violenta e depois se traveste de vítima? Esse artigo não é neutro — porque o sistema também não é. É uma denúncia. E um guia para mulheres que recusam continuar silenciadas.

1. A origem da Lei de Alienação Parental: um DNA misógino e desacreditado

A Lei de Alienação Parental tem origem nas ideias de Richard Gardner, médico norte-americano que nos anos 1980 criou a chamada “Síndrome da Alienação Parental”. Segundo ele, crianças rejeitam um dos pais após a separação não por traumas ou abusos, mas por manipulação — geralmente da mãe.

A teoria foi duramente rejeitada pela comunidade científica. A Organização Mundial da Saúde e a Associação Americana de Psiquiatria nunca reconheceram a “síndrome” como válida. Gardner chegou a afirmar, sem qualquer respaldo, que 90% das denúncias de abuso sexual em divórcios eram falsas. A misoginia e a naturalização da pedofilia estão no cerne dessa construção.

Mesmo assim, o Brasil transformou essa teoria em lei. Sem ouvir especialistas. Sem base empírica. Sem diálogo com a realidade das mulheres e crianças.

2. Na prática: a LAP como arma contra mães que denunciam

O efeito prático da Lei de Alienação Parental é devastador: mães que denunciam abusos e violência passam a ser acusadas de “alienadoras”. De protetoras, tornam-se rés. De vítimas, tornam-se culpadas. É o velho ciclo da violência, agora chancelado pelo Estado.

Segundo o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do CNJ (2021), a tese da alienação parental é uma estratégia recorrente usada por homens para desacreditar denúncias de violência. A LAP serve como ferramenta de vingança, mantendo o agressor no campo de controle e punindo a mulher com o que ela mais valoriza: a guarda de seus filhos.

E o Judiciário? Costuma ignorar a realidade concreta. Aplica a lei com base em laudos superficiais, produzidos por peritos despreparados. Mães são tratadas como obstáculos à convivência familiar — mesmo quando estão apenas tentando sobreviver.

3. Guarda compartilhada com agressor: quando o Judiciário legaliza o terror

A imposição da guarda compartilhada em contextos de violência doméstica é, sem qualquer exagero, uma das expressões mais cruéis e perversas da omissão do sistema de Justiça brasileiro. Desde a promulgação da Lei nº 13.058/2014, o que deveria ser uma opção excepcional e equilibrada tornou-se uma regra automática, cega e profundamente injusta. O §2º do art. 1.584 do Código Civil consagrou um modelo padronizado, como se todas as famílias tivessem as mesmas dinâmicas, ignorando deliberadamente a existência da violência patriarcal que estrutura tantas relações familiares.

Em 2023, a Lei nº 14.713 trouxe um sopro de lucidez ao determinar que, em casos de violência doméstica, a guarda compartilhada deveria ser afastada. Mas, na prática, essa norma é solenemente ignorada. Por quê? Porque o Judiciário insiste em tratar agressão como desavença, medo como histeria, e proteção como manipulação. A violência contra mulheres e crianças foi normalizada sob a desculpa da imparcialidade.

Juízes, promotores e peritos exigem da mulher um nível de prova inalcançável — como se a violência que ocorre dentro de casa, marcada por silêncio, vergonha e intimidação, pudesse ser documentada como se fosse uma transação bancária. É a institucionalização da revitimização: quando ela apanha, não basta. Quando ela denuncia, é desacreditada. Quando ela protege, é punida.

Essa lógica perversa viola frontalmente a Constituição. O art. 227 é claro: crianças e adolescentes devem ter prioridade absoluta e proteção integral. Assim, na dúvida, deve-se escolher a alternativa mais segura para a criança. Mas o que se vê é o oposto: na dúvida, entrega-se a criança ao agressor, em nome de um falso ideal de equilíbrio parental — e o Judiciário chama isso de justiça.

O Superior Tribunal de Justiça já reconheceu que a violência contra a mãe contamina todo o ambiente familiar. No REsp 1.550.166/DF, ficou decidido que esse fator justifica, sim, o afastamento da guarda compartilhada. Mas, em vez de orientar a base, essa decisão virou exceção em meio a uma jurisprudência leniente, conivente e misógina.

A ciência também já falou. Desde 1996, a American Psychological Association alerta que crianças que presenciam violência doméstica sofrem efeitos tão devastadores quanto aquelas que são agredidas diretamente. Kitzmann et al. (2003) comprovaram o óbvio: crianças que vivem em lares onde a mãe é agredida crescem com traumas, medos, depressão, distúrbios emocionais — tudo isso sob o olhar omisso do Estado.

A convivência com um pai agressor, imposta judicialmente, não é um direito à guarda compartilhada. É tortura psicológica autorizada pelo Poder Judiciário. É a manutenção do controle patriarcal pela via judicial. É o corpo da mulher — e o da criança — entregue de bandeja a quem os violentou. Tudo em nome de uma abstração jurídica chamada “melhores interesses”.

A guarda compartilhada, nesse contexto, é mais que inadequada: é inconstitucional, antiética e desumana. Exigir “cooperação parental” de uma mulher que foi espancada, ameaçada ou humilhada é exigir que ela volte à cena do crime e finja que nada aconteceu. É pedir que ela negue a si mesma, e que sacrifique os próprios filhos no altar do formalismo legal.

Revogar essa lógica é urgente. Aplicar o Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero do CNJ não é favor, é obrigação. E acabar com a guarda compartilhada obrigatória em casos de violência não é radicalismo, é o mínimo. É o que nos separa da barbárie jurídica.

4. “Melhores interesses da criança”: o argumento distorcido

O princípio do melhor interesse da criança, previsto no art. 227 da Constituição Federal, no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e na Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança, exige proteção integral. Isso inclui segurança física, saúde mental, estabilidade emocional e ambiente livre de violência.

No entanto, a aplicação da Lei de Alienação Parental e a imposição da guarda compartilhada reduzem esse princípio a uma obsessão patológica: garantir contato com ambos os pais a qualquer custo, como se a simples presença paterna fosse sinônimo de equilíbrio. Mas o verdadeiro melhor interesse da criança não é um “contato mínimo obrigatório”. É o direito de crescer em paz. Com segurança. Com dignidade.

Como afirmam Mendes e Ormerod (2019), devemos falar em “melhores interesses” — no plural — porque os direitos da criança são múltiplos e interdependentes. Reduzir isso a uma “visitação quinzenal” com um pai violento é trair a essência da proteção.

Pior: é instrumentalizar um princípio constitucional para mascarar a perpetuação da violência. É usar a linguagem dos direitos para reforçar práticas patriarcais. É ignorar que não há melhor interesse possível quando a convivência expõe a criança à ameaça, ao medo e à dor. E mais: é deslegitimar o próprio Direito da Criança, transformando-o em escudo para proteger agressores sob o manto da legalidade.

A pergunta que se impõe, portanto, não é mais “qual o melhor interesse da criança?”, mas sim: a quem interessa essa versão distorcida desse princípio? Porque definitivamente não é à criança. Nem à mãe. Nem à justiça. É ao patriarcado. E já passou da hora de desmascarar esse cinismo institucionalizado.

5. A falsa lacuna: o ordenamento jurídico já oferece instrumentos eficazes de proteção

A alegação de que a revogação da Lei de Alienação Parental (LAP) deixaria crianças e adolescentes desprotegidos é juridicamente infundada. O Brasil possui um robusto arcabouço normativo infraconstitucional, constitucional e internacional voltado à proteção integral da infância, que abrange amplamente as hipóteses de violação de direitos no contexto familiar, inclusive as que envolvem comportamentos parentais disfuncionais.

Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA – Lei nº 8.069/1990)
Inspirado na Convenção da ONU, o ECA é referência internacional em proteção à infância. Prevê, nos arts. 3º, 4º, 5º e 98, II, medidas judiciais para garantir dignidade, respeito e convivência familiar segura. O art. 101 autoriza a intervenção estatal sempre que os pais violarem direitos fundamentais dos filhos.

Código Civil (Lei nº 10.406/2002)

O poder familiar deve atender aos interesses dos filhos (arts. 1.630 a 1.638). Em casos de abuso, prevê-se a suspensão ou perda desse poder (arts. 1.637 e 1.638). A guarda, regulada nos arts. 1.583 e 1.584, pode ser unilateral quando há risco, conforme a Lei nº 14.713/2023.

Lei Henry Borel (Lei nº 14.344/2022)

Voltada à violência doméstica contra crianças, permite medidas protetivas urgentes. O inciso VI, art. 20, autoriza a suspensão ou restrição da convivência familiar com o agressor a qualquer tempo.

Convenção sobre os Direitos da Criança (ONU – Decreto nº 99.710/1990)

Com status supralegal, garante a separação da criança do convívio familiar quando necessário ao seu melhor interesse (art. 9º) e impõe aos Estados o dever de protegê-la contra toda forma de violência (art. 19).

Diante desse panorama, é evidente que o ordenamento jurídico brasileiro já dispõe de mecanismos eficazes, atualizados e compatíveis com os tratados internacionais de direitos humanos para lidar com situações em que um dos genitores ultrapassa os limites do poder familiar, inclusive em contextos de disputa de guarda e convivência.

A existência da LAP, portanto, não é uma necessidade normativa, mas uma redundância disfuncional, contaminada por pressupostos misóginos e anticientíficos. Ao contrário do ECA, da Lei Henry Borel e da Convenção da ONU, que priorizam a proteção integral, a LAP opera com base no litígio, na punição e na inversão de papéis entre vítimas e agressores.

Revogar a LAP não significa deixar um vazio legislativo, mas fortalecer a coerência do sistema de proteção à infância com base em direitos humanos, evidências empíricas e compromisso com a justiça de gênero. O que se propõe não é ausência de norma — é a eliminação de um instrumento de opressão travestido de cuidado.

Revogar a LAP é uma urgência civilizatória

A Lei de Alienação Parental é um instrumento de opressão. Ela reforça estereótipos, silencia vítimas, perpetua o ciclo da violência e desumaniza mães. Seu suposto objetivo — proteger crianças — é uma farsa. Na prática, ela as expõe. As vitimiza. As condena.

Se quisermos romper com o patriarcado institucionalizado no Direito das Famílias, precisamos começar por ela. A LAP não merece reforma. Merece ser extinta. Revogá-la não é radicalismo — é coerência constitucional. É justiça. É sobrevivência.

Proteger seu filho não é alienação parental. É um direito. E mais do que isso: é seu dever legal e moral. O Judiciário precisa ouvir isso em alto e bom som — e começar a agir como protetor da infância, não como cúmplice da violência.


FAQ — Perguntas Frequentes

1. O que fazer se eu for acusada de alienação parental após denunciar violência?

Busque imediatamente um(a) advogado(a) especializado(a) em Direito das Famílias com perspectiva de gênero. Guarde provas: mensagens, prints, boletins de ocorrência, laudos, conversas. Busque apoio psicológico com profissionais que compreendam os impactos da violência doméstica.

2. A guarda compartilhada pode ser imposta mesmo com medida protetiva contra o pai?

Não deveria. A Lei 14.713/2023 proíbe expressamente a guarda compartilhada em caso de risco de violência doméstica. No entanto, há resistência do Judiciário na aplicação dessa norma.

3. Como me proteger judicialmente sem ser acusada de alienação parental?

Registre todas as comunicações com o pai por escrito. Siga decisões judiciais, mas busque revisá-las quando necessárias. Envolva profissionais — psicólogos, assistentes sociais — para produzir laudos e relatórios de acompanhamento.

4. Quais sinais indicam que a LAP está sendo usada para me punir?

Se a acusação surge após denúncia de violência, se o pai tenta inverter os papéis nos autos, se há tentativas de desqualificar sua maternidade, ou se a guarda é usada como barganha, há indícios claros de manipulação judicial com base na LAP.

5. A alienação parental tem base científica?

Não. A teoria foi criada por Richard Gardner, sem respaldo de instituições reconhecidas e com forte viés misógino. Ela não é aceita pela OMS nem pela APA.

Referências:

  • BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 5 out. 1988.
  • BRASIL. Lei nº 13.058, de 22 de dezembro de 2014. Altera os arts. 1.583, 1.584, 1.585 e 1.634 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), para estabelecer o significado da expressão guarda compartilhada. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 23 dez. 2014.
  • BRASIL. Lei nº 12.318, de 26 de agosto de 2010. Dispõe sobre a alienação parental. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 27 ago. 2010.
  • BRASIL. Lei nº 14.713, de 30 de outubro de 2023. Altera a Lei nº 13.058, de 22 de dezembro de 2014, para vedar a guarda compartilhada nas hipóteses em que há violência doméstica. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 31 out. 2023.
  • BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990). Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 16 jul. 1990.
  • BRASIL. Lei nº 14.344, de 24 de maio de 2022. Institui a Lei Henry Borel e dispõe sobre a garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 25 maio 2022.
  • BRASIL. Decreto nº 99.710, de 21 de novembro de 1990. Promulga a Convenção sobre os Direitos da Criança. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 22 nov. 1990.
  • CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero. Brasília: CNJ, 2021. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/11/Protocolo_para_julgamento_com_perspectiva_de_genero-CNJ.pdf. Acesso em: 25 mar. 2025.
  • AMERICAN PSYCHOLOGICAL ASSOCIATION (APA). Violence and the Family: Report of the American Psychological Association Presidential Task Force on Violence and the Family. Washington, D.C.: APA, 1996.
  •  
  • ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Convenção sobre os Direitos da Criança. Nova York: ONU, 1989.
  • MENDES, Jane; ORMEROD, Laura. Child’s Best Interests: Plural and Interdependent Rights. International Journal of Children’s Rights, v. 27, n. 2, p. 212–230, 2019.
  • KITZMANN, Katherine M. et al. Child Witnesses to Domestic Violence: A Meta-Analytic Review. Journal of Consulting and Clinical Psychology, v. 71, n. 2, p. 339–352, 2003.

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