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Nosso blog é voltado para mulheres que desejam entender mais sobre questões relacionadas ao Direito das Famílias e Violência Doméstica, sempre com uma abordagem acessível e baseada na perspectiva de gênero.

Não é só conflito, é violência: O que a justiça precisa ver antes de impor a Guarda Compartilhada

Introdução

Você já foi orientada a “tentar conversar com o pai do seu filho” mesmo após sofrer ataques emocionais, desvalorização e desprezo contínuo? Já ouviu de um juiz que a guarda compartilhada é sempre o melhor caminho — mesmo quando você mal consegue que ele responda uma mensagem sobre a febre da criança?

Esse é um retrato cruel da realidade de muitas mães brasileiras. A guarda compartilhada foi pensada como símbolo de igualdade, mas tem sido usada como ferramenta de opressão, mantendo mulheres presas em ciclos de violência, agora mascarados por decisões judiciais que insistem em chamar de “conflito” o que é, na verdade, violência.

Neste artigo, vamos romper o silêncio: diferenciar o conflito legítimo da violência persistente, denunciar o abandono travestido de coparentalidade e mostrar o que a Justiça precisa — urgentemente — começar a enxergar.

1. A idealização da guarda compartilhada

A guarda compartilhada é vendida como um ideal. Na letra da lei, parece um sonho: igualdade de direitos, corresponsabilidade parental, decisões conjuntas. O artigo 1.584 do Código Civil, com redação dada pela Lei 13.058/2014, estabelece essa modalidade como prioridade no julgamento de casos de guarda.

Mas a realidade concreta das mulheres é outra. O que temos não são pais interessados em dividir tarefas e decisões, mas homens que querem o título de “pais ativos” para exibir em redes sociais, enquanto toda a carga emocional, logística e afetiva continua recaindo sobre a mãe.

Esse abismo entre teoria e prática revela o quanto o sistema ignora a sobrecarga materna e idealiza uma coparentalidade que, muitas vezes, só existe nos autos do processo.

2. Conflito ou violência? A linha tênue que o Judiciário insiste em ignorar

Não é qualquer desacordo que inviabiliza a guarda compartilhada. Desentendimentos eventuais fazem parte de qualquer relação pós-divórcio. Mas há uma diferença gritante entre conflito e violência — e essa distinção é sistematicamente ignorada pelo Judiciário.

Conflito é o desacordo entre partes que, apesar das divergências, ainda conseguem dialogar de forma funcional.

Violência, por outro lado, é o padrão de comportamento coercitivo, humilhante, silencioso ou ostensivo, que busca desestabilizar emocional e psicologicamente a mulher. E ela não precisa ser física para ser devastadora.

Na maioria dos casos, o Judiciário trata como “conflito” o que é, na verdade, violência psicológica, patrimonial e moral, violando a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), que reconhece essas formas de agressão no âmbito doméstico e familiar.

3. O silêncio dele, o peso para ela

Quando não há diálogo, quem sofre? A criança, sim. Mas também — e principalmente — a mãe, que é jogada num limbo de decisões pendentes, falta de resposta, omissão e descaso.

Não há coparentalidade quando um dos pais desaparece em momentos decisivos, responde com deboche, ignora os compromissos e transfere toda a responsabilidade para a mulher. A comunicação é usada como arma: ou ela insiste em correr atrás do “coparticipante”, ou é acusada de alienação parental.

E enquanto isso, ela é quem escolhe escola, leva ao médico, resolve crises emocionais, acorda de madrugada, comparece às reuniões, acolhe, educa e sustenta. Ele manda mensagem dizendo que vai buscar no domingo. Não aparece. Some. Reaparece. Reclama. E desaparece de novo.

4. O que os tribunais deveriam ver — mas não veem

Apesar das decisões importantes do STJ, como no REsp 1888868 e AgInt no REsp 1.688.690/DF, ainda há uma resistência absurda do Judiciário em reconhecer que a guarda compartilhada pode ser um instrumento de perpetuação da violência emocional quando imposta entre partes sem qualquer capacidade mínima de diálogo.

A jurisprudência já entende que a ausência de comunicação real inviabiliza a guarda compartilhada. Mas nos tribunais do país, mães ainda escutam: “não existe pai ruim, existe mãe que não colabora”.

É preciso aplicar, urgentemente, o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do CNJ e o Enunciado 603 do IBDFAM: “É incompatível com o instituto da guarda compartilhada a existência de violência doméstica e familiar.”

5. O estudo psicossocial e a invisibilidade da violência

O estudo psicossocial é uma ferramenta importante, mas ainda profundamente falha. Muitas mulheres relatam se sentir mais julgadas do que acolhidas, como se tivessem que “provar” que a ausência de comunicação não é culpa sua.

A pressão sobre as mães é absurda: precisam demonstrar equilíbrio emocional, paciência com o ex-parceiro abusivo, resiliência diante da omissão, e ainda assim correm o risco de serem responsabilizadas por “dificultar o diálogo”.

É urgente que assistentes sociais e psicólogos sejam treinados com perspectiva de gênero para não naturalizarem violências travestidas de “falta de acordo”.

6. O que você pode fazer se estiver vivendo isso

  • Documente tudo. Mensagens ignoradas, respostas agressivas, omissões, tentativas de contato. Isso será fundamental no processo.
  • Busque orientação jurídica especializada. Um(a) advogado(a) com especialista em Direito das Famílias e perspectiva de gênero é essencial.
  • Mostre os impactos na criança. Mudanças no âmbito escolar, inseguranças, ansiedade, regressões comportamentais. Tudo importa.
  • Peça estudo psicossocial com urgência. Prepare-se emocionalmente, mas não silencie os abusos.
  • Não se cale. A guarda compartilhada não é obrigação. O bem-estar da criança está acima de qualquer ideal legal.

Justiça que ignora violência, valida a opressão

A guarda compartilhada é uma construção bonita no papel. Mas quando o silêncio do genitor é violento, e a sobrecarga da mãe é invisibilizada, essa mesma guarda se transforma em instrumento de opressão.

A Justiça precisa — mais do que nunca — parar de responsabilizar mães por não dialogarem com quem as violenta. Precisa aprender a distinguir conflito de abuso. E, sobretudo, precisa parar de agir como se a maternidade fosse uma obrigação moral e inquestionável das mulheres.

O seu silêncio não é culpa. A ausência dele não é conflito. E o seu esforço diário é um ato de resistência.


Perguntas Frequentes (FAQ)

1. O que diferencia conflito familiar de violência psicológica?

Conflito envolve divergência, mas com possibilidade de diálogo. Violência é um padrão de controle, humilhação e omissão que compromete a dignidade e o bem-estar.

2. A guarda unilateral tira o poder familiar do pai?

Não. Ele continua com direito de ser informado e de participar de decisões, mas a mãe passa a ter a autonomia necessária para proteger a criança.

3. Posso pedir mudança de guarda mesmo com sentença anterior?

Sim. Mudanças nas circunstâncias, como agravamento dos conflitos ou omissões reiteradas, justificam revisão judicial.

4. Estudo psicossocial pode ajudar meu caso?

Sim, desde que bem conduzido. É fundamental mostrar a ausência de cooperação e o impacto da situação na criança.

5. O pai pode me acusar de alienação parental se eu pedir a guarda unilateral?

Ele pode tentar, mas não há alienação quando há provas de que não há diálogo possível, e a proteção da criança está em risco.

Referências:

BRASIL. Código Civil. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 11 jan. 2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm. Acesso em: 25 mar. 2025.

BRASIL. Lei Maria da Penha. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 8 ago. 2006. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Lei/L11340.htm. Acesso em: 25 mar. 2025.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero. Brasília, 2021. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/10/Protocolo_Julgamento_Perspectiva_Genero_CNJ.pdf. Acesso em: 25 mar. 2025.

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TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil: Direito de Família. 15. ed. São Paulo: Método, 2023.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.888.868/SP. Relator: Min. Paulo de Tarso Sanseverino. Terceira Turma. DJe 09/11/2023.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Interno no Recurso Especial nº 1.688.690/DF. Relator: Min. Marco Aurélio Bellizze. Terceira Turma. DJe 03/06/2020.

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